segunda-feira, 16 de junho de 2008

O voo da codorniz com Google Earth (XXVI)

El Puerto de Santa María, Andaluzia, Espanha

Procura-se um sabor de há cinco anos. Imperativo reconhecer aquela esquina, aquela porta, aquela mesa, a travessa onde molho o pão sem que me ralhem. Ansiedade em cada fachada amarelada, em cada pátio aflorado, em cada palmeira a ritmar a avenida, em cada ladrilho a nomear as ruas. Como se houvesse painéis a indicar quantos quilómetros quedam para não-sei-onde, mas sem desvendar as terras a que a estrada conduz. Gargalhadas regateadas. Já lhes perdi a conta e são tantas e faltam tantas...

Ouço "é aqui". Não longe, a deusa Gades, de mão na fronte e seios descobertos, não deixa de olhar em redor. Tão-pouco eu, interrompendo a volta de 360 graus só pelo que ouvi e vi que era certo. Venham do oceano os que o sulcam e da terra as que crescem por ela dentro, abrindo olhinhos com bravura. Venha quem encontrou o que procuro, quem através de outro mar aceita frutos com um sabor de há cinco anos, um sabor para daqui a cinco mil. Venha quem quer que eu tenha sido, ontem, em El Puerto de Santa María. A passar as mãos por raras cãs ou franjas mais ou menos assim. Como se da mistura de umas e outras fosse feita a melena do poeta daqui ou tais filamentos servissem para fabricar as asas de quem ele queria.

Rafael Albertí, El ángel bueno

Vino el que yo quería
el que yo llamaba.
No aquel que barre cielos sin defensas.
luceros sin cabañas,
lunas sin patria,
nieves.
Nieves de esas caídas de una mano,
un nombre,
un sueño,
una frente.
No aquel que a sus cabellos
ató la muerte.
El que yo quería.
Sin arañar los aires,
sin herir hojas ni mover cristales.
Aquel que a sus cabellos
ató el silencio.
Para sin lastimarme,
cavar una ribera de luz dulce en mi pecho
y hacerme el alma navegable.

3 comentários:

Sofia K. disse...

Cinco anos depois, descobrir esse lugar foi mais do que mágico. Acreditar que as 'bravas' ainda seriam as mesmas e ter a coragem de as pedir sem questionar. Comer os gelados todos, de todos os sabores que nem o Santini, nem a Itália têm... esquecer a dieta e deixar-nos levar pelo calor.

Maravilhosa a viagem, da qual só consigo escrever o que disse lá no Cais, porque tu sabes o que é e como é... como a Mary Poppins... 'practically perfect!'

Espero pelas férias da próxima semana.

beijos

ana v. disse...

Então já chegaram os três mosqueteiros! Ainda bem que foi perfeita a viagem, com descobertas e romarias da memória.

O poema é lindo, Huck. A "alma navegável" é uma expressão que vai para os meus arquivos mentais.

Beijinhos

Huckleberry Friend disse...

Sofia, depois do que escreveste no cais, as palavras sobram. Ata aos teus cabelos o silêncio, como dizia Albertí, para que ao passar por eles a mão recordemos esta viagem já a pensar na próxima. Um beijo, cucharita de azúcar.

Ana, aqui nos tens... um por todos e todos por um, acertaste na comparação ;) O verso - os três últimos, aliás, e todo o poema - é lindo, não é? Estou contigo: guardar coisas destas adoça as almas. Que se querem navegáveis, mas também são navegantes... beijinhos!