terça-feira, 24 de junho de 2008

O voo da codorniz (XXVII)

Vale de Chelas, freguesia de Marvila, Lisboa, Portugal

Muita gente não dá nada por esta zona da cidade. Mas eu gosto de Marvila e das coisas bonitas que por lá há para quem quiser vê-la com olhos de ver. Quero centrar-me em duas palmeiras magricelas que há ali entre Chelas e as Olaias. Vêem-se melhor na imagem abaixo, do LiveSearch da Microsoft, do que na do Google Earth. Estas árvores estão num texto que escrevi, em 2001, para um projecto chamado Lisboa, capital do nada. Foi publicado num livro que recolheu tudo quanto se produziu para esta iniciativa da Associação Extra-Muros. E republica-se, hoje, aqui.


Nada… estranha palavra. Nada, na voz dela. Mais limpa e num timbre algo diferente do habitual, pareceu-lhe. Nada ou talvez o sol a pôr-se entre duas palmeiras exíguas e restos de luz coalhada a tornar especial um terreno indigno de se reparar nele. Eu próprio – corrigiu – indigno de que se repare em mim. Pelo menos ela. Quanto tempo tardará o dia em que nem tocado pelo pôr-do-sol me vejas? Quantos pôres-do-sol para que volte a ser nada?

Esta paisagem... nenhures. É o nome que o nada toma quando é lugar, assim como é ninguém se se faz pessoa e nunca se se torna momento. Nunca tinha reparado nos matizes destes prédios feios. Como se para tal tivesse de me sujeitar a não ser. Claro que não embarcaria de ânimo leve em tamanha cedência – ah, o orgulho! –, mas a verdade é que fiquei ninguém quando desapareceste atrás do poste de iluminação com as tuas palavras, as tuas pestanas, as tuas lágrimas off-the-record. Afinal, tornaste-me capaz de habitar este nenhures, andando ao deus-dará, fazendo deste nunca o meu agora.

Estranha palavra – repetiu de si para si –, estranho processo de aplicá-la às coisas. Estranho ainda dizer “isto não é nada”, nomear o objecto e negar-lhe o ser logo a seguir. As palmeiras, por exemplo. Nunca tinham sido nada, mas agora dava pelo ombro encostado à da esquerda enquanto olhava para cima e pensava que deviam estar ali há muito tempo. Viram todos os nossos pôres-do-sol, concluiu, mas nessa altura nem o pôr-do-sol era mais do que um pretexto ou pano de fundo.

Será que as coisas existem em estado puro? Ou não existe nada? A força deste pronome-indefinido-advérbio-nome-comum que o diga. O nosso homem olhou a superfície metalizada do rio, ao fundo, enquanto recordava o diálogo tido há pouco com a amada perdida (ou ele para ela):

- E agora?

- Agora?!

- Sim, nós, isto... o que é isto?

- Isto não é nada!

- Nada?

- Nada, nada... que não te afogas.

3 comentários:

ana v. disse...

Gostei desta forma de sobrevoar o Nada. Já te disse que escreves bem, muito bem?

tiagovqueiroz disse...

Meu caro amigo,

Esta terra de ninguém tem sido muitas vezes a capital de bons momentos passados.

Aliás o título não poderia ser mais correcto porque não há "nada" como o charme decadente dos sítios que sobrevivem dignamente apesar de desgastados pelo tempo, pelos maus hábitos e pela crueldade do ordenamento humano do território.

Marvila é um desses sítios, marginal por definição, por vezes rude, outras algo exótica...Enfim, somos conquistados pela sua alma, pelos seus recantos inesperados e por aquela luz subtilmente diferente das outras desta cidade (só os verdadeiros lisboetas conhecem estes cambiantes da luz...)

Para quem não sabe, eu sou lisboeta. Aliás sou um lisboeta orgulhoso, que se considera conhecedor da sua cidade

E talvez tu não saibas Pedro, mas há uns anos, não sei precisar quantos - talvez três antes do ano da Capital do Nada, foste tu que me despertaste a atenção por Marvila. Pela tua mão os seus nomes, recantos e lugares ganharam um lugar especial no meu léxico lisboeta...

Sugestão de voo para que não conhece (ou conhece mal)este não-lugar:
Desviem o vosso curso habitual na rotunda do relógio, virem para Chelas e sintam o prazer único de descer e serpentear pelo vale de Chelas em direcção a Marvila, passando pelo Beato. Se, ao passarem por baixo da ponte ferroviária, se sentirem invulgarmente sorridentes e descontraídos, se a viagem "vos bater", é óbvio que são lisboetas. Se não forem, passarão a sê-lo honorariamente... bem vindos ao clube, bem vindos à Capital do Nada.

Pedro...
...Obrigado.

Huckleberry Friend disse...

Obrigado, Ana... com asas de codorniz ou outros aparatos, o importante é ir voando. Já alguma vez fizeste parasailing? Se não, é uma boa ideia para o Verão que por nós de adentra. Beijos.

Dearest amigo e cunhado:
Voltemos a Marvila num destes fins de tarde... a admirar as ferrugens, os terrains vagues, o rio que aqui começa - se percorrido em sentido inverso - a ser Mar da Palha, os armazéns do Largo David Leandro Silva (quem foi este? e o Zózimo Pedroso de uma ruela ao lado?), a vegetação, as tascas da Rua do Açúcar, os comboios, os pátios, as pessoas. É uma Lisboa quase abaixo do Equador. E da qual falaste com sapiência tal que decidi fazer aos leitores do codornizes o favor de lhes dar a ler esta tua peça. Um abraço fraterno, Tiago.