segunda-feira, 31 de março de 2008

Um aceno

Pablo Picasso, Les mains liées

Algures no mundo, algures no tempo, uma mão acena. Desembaraçada, vence o atrito do ar líquido que lhe aquece os dedos. Fabrica ondas concêntricas que, na borda do micro-oceano em que somos convidados a mergulhar, salpicam os olhos de quem pára, deslumbrado, a observar todo aquele movimento.


António Pinho Vargas, As mãos (piano solo)

domingo, 30 de março de 2008

Músicas que ficaram (V)

Mais discos da minha vida, em longuíssima resposta a um pedido da Martini (cujo blogue vos recomendo). A ordem alfabética gerou, desta vez, um trio de raízes latinas, composto por músicos a quem podemos chamar cidadãos do mundo. A abrir a remessa, o homem que tem a pole position na minha discoteca pessoal. Trinta e tal anos de música, fãs que são filhos e netos de fãs, abertura mental e musical a novos sons, ideias e pessoas, originalidade à flor da pele. Eis Sérgio Godinho em meia dúzia de penadas. Fiquem com uma canção que não figura nas compilações, mas que é um retrato lindo dos tormentos que o amor nos faz passar.


Pano-cru, Sérgio Godinho (Segundo andar direito)

A segunda convidada de hoje é a estranha Lula Pena. Nascida em Lisboa, com passagem por Barcelona, reinventa o fado, atira-se ao repertório brasileiro e procura sonoridades mais longínquas. Há uns anos, trouxe um instrumentista iraniano à Culturgest, para um recital a que lastimo não ter podido assistir. Vi-a, há meses, num bar do Bairro Alto. Aquela voz quente numa noite fria despertou afectos e semeou saudades. Saudades, entre outras, de tardes em que ouvia o disco Phados no pátio de trás do Baleal, deitado na tijoleira quente como o timbre da Lula, sem conseguir que (quase) ninguém gostasse dela... o raspanete que levei, certa vez, por ter ido à minha vida (ao mergulho do fim do dia, naturalmente) deixando ligada a aparelhagem "com essa gaja que nem voz tem"! Tem voz, sim senhor. O que não é é chapa um! Ouçam-na aqui em baixo ou vão ao YouTube, onde há vídeos de actuações recentes.



Phados, Lula Pena (Fria claridade)

Temos, por fim, Manu Chao. Não requer grandes apresentações, apenas uma chapelada por liderar uma certa rebelião dos músicos contra as imposições das grandes editoras discográficas. Foi outro protagonista do hit parade balealense, no inesquecível Verão de 1999, em que me calhou estar atrás de um balcão a servir copos. Que até escorregavam melhor quando ouvíamos isto.



Próxima estación... Esperanza, Manu Chao (Me gustas tu)

Entregas anteriores: I, II, III e IV

sexta-feira, 28 de março de 2008

Blogues à sexta (XIV)

Alicerces

Mais um blogue dos que escolhi para passar, qual batata quente, um prémio que chegou ao codornizes. Chama-se Alicerces e é um de três espaços mantidos pela Helena F. Monteiro (olha aqui os outros dois), que vai alicerçando palavras, poesia e imagens. O trabalho é, pois, de selecção e apresentação - ou seja, edição, palavra que me é cara.

Neste blogue, de aspecto sóbrio e depurado, tão depressa revisitamos os consagrados como descobrimos nomes de que nunca tínhamos ouvido falar (o que nem sempre quer dizer que não tivessem obra considerável). Vêm do mundo inteiro e de todos os séculos. Atrevo-me a chamar-lhes intemporais e acho que o fundo branco reforça esta ideia, não me perguntem porquê.

Algumas das entradas que a Helena publicou nos últimos dias trazem-nos Maria Gabriela Llansol, Joaquim Cardoso Dias, Ruben A., Ilya Repin, Ruy Belo e Ana Akhmatova por Natay Altman. Com alicerces destes, é grande para o leitor a tentação de construir algo... deixo a cada um o desafio de descobrir o quê.

Já tenho bilhete!

E, para celebrar, deixo-vos uma das músicas menos conhecidas - e mais bonitas - de Mark Knopfler. Faz parte da banda sonora do filme Local hero, que também é um dos meus discos da vida. Espero ouvi-la daqui a uma semana. Se não, consolo-me com as outras, que este tipo não tem músicas más!


Mark Knopfler, The way it always starts

Last night I thought I heard my name
Well it was too dark to see, but it had to be,
The voice was just the same
That's the way it always starts,
Sitting here and waiting on the beating of my heart.

Courrier Internacional n.º146

Aí está a edição de Abril do Courrier Internacional, nas bancas a partir de hoje. Trouxemos para a capa uma análise da perda de influência dos Estados Unidos da América no Mundo, um texto notável do jovem académico Parag Khanna. Outros assuntos na revista deste mês: a caça ao último oficial nazi ainda a monte, a vida no enclave sérvio de Gracanica (Kosovo), um passeio literário por Edimburgo e um artigo do escritor nigeriano Wole Soyinka (Nobel da Literatura em 1986) sobre o costume de enfeitar os camiões com pérolas da sabedoria popular. Comprem, leiam e dêem-me na cabeça se for preciso.

Bruce Springsteen, Born in the USA

quinta-feira, 27 de março de 2008

Ainda Lisboa

A bela e o monstro (SK e Adamastor by PC)
Na Escola Primária, era costume pedirem-nos composições sobre "o que fiz nas férias" ou "no fim-de-semana" (alternativas ao igualmente popular "o que quero ser quando for grande"). E lá contávamos as aventuras, as brincadeiras, os passeios. Esta semana, inverteu-se-me esse esquema: um passeio pela cidade foi antecedido por um texto sobre o que me apetecia, que afinal mais parece um relato a posteriori. Chamou-me a atenção para isto uma das três tágides que me acompanharam por Lisboa abaixo. Troque-se o Pavilhão Chinês pelo Noobai e o resto foi como escrevi. Muito graças a este trio, que tenho vontade de reunir numa entrada do codornizes.


Ana Knapič, Encontrar (letra de Filipa Knapič)

Livros irrequietos

Maria Helena Vieira da Silva, Biblioteca em fogo

Às vezes penso que os livros passeiam lá por casa quando não estamos. Do braço do sofá, onde os deixou a preguiça, para a bancada da cozinha. Talvez à procura de almoço. Da mesa de cabeceira, onde se eternizam depois de lidos, para cima da cómoda. Porventura desejosos de escaparem às quatro paredes do quarto. Da mala de tiracolo pendurada no cabide da entrada, onde viajaram todo o dia, quiçá sem serem abertos, para a borda do lavatório. Aflições, compreende-se.

Quantas vezes me acontece procurá-los onde sei que os deixei, onde tenho a certeza de os ter visto, para descobrir que só me espera o desengano... sumiram, foram ao parapeito da janela ver que tempo faz ou adormeceram no chão enquanto decidiam o itinerário do dia. Só muito raramente estão inocentes, por exemplo, quando os levou a cara-metade (sucede, por vezes, estarmos a ler o mesmo livro, gerando-se confusões de exemplares).

O que nunca fazem os bons dos livros é voltar pelo próprio pé à ao lugar que lhes coube na (des)organização do escritório. Ou da sala ou da cozinha ou do quarto de trás, que isto de ter livros em todas as divisões foi uma escolha. O que não foi uma escolha foi caber-lhes a eles a decisão de pousarem aqui ou acolá, conforme os humores.

Não me incomoda, na verdade, a insubordinação livresca. Acho graça a este deambular, diverte-me imaginar como se deslocarão - se batendo páginas, num voo ruidoso, se rastejando escada acima, se empilhando-se uns para ajudar os outros a escalar obstáculos - e tudo isto tem a vantagem de haver sempre um livro à mão de semear. Para ser totalmente franco, até suspeito que o cheiro agradável que às vezes sinto ao entrar em casa, e que nunca consegui nomear, é o das palavras, frases e versos que estes amotinados não evitam, no seu entusiasmo, deixar escapar.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Quando o coração bate mais forte


José González, Heartbeats


Música para ouvir e poesia para ler, ou vice-versa, num dia especial. Não por se tratar do Dia Mundial de Qualquer Coisa (hipótese não descartável, porque quase todos o são), mas porque hoje o coração bate com mais força, com maior intensidade, a um ritmo alucinante. Estonteante. Esgotante. Que ninguém apanha.


Pulsação da treva, de António Gedeão

Fundiu-se a roda do Sol
entre os cedros afilados.
Desfez-se em azuis rosados,
tinturas de tornesol.

Agora, solenemente,
como um corpo que se enterra,
ao som de um sino plangente
desce a noite sobre a terra.

Campânula asfixiante.
Circula um terror nas veias.
Zumbem estrelas em colmeias
num céu alheio e distante.

Numa dormência de cova,
suspensa em leite de Lua,
toda a vida se renova
e a guerra continua.

Nas marés do protoplasma
flui, reflui, perene e forte.
Espreita as pegadas da morte,
persegue-a como um fantasma.

Cega e surda, impenetrável,
lateja, na treva urdida,
essa coisa inevitável
que é a vida.


NOTA: Imagens retiradas da Anatomia de Gray (com a e não com e, que é como quem diz do lendário calhamaço e não da simpática série televisiva)

terça-feira, 25 de março de 2008

Unselfconscious little me

Hoje cantei isto em altos berros, pela Duque d'Ávila acima.
De auscultadores nos ouvidos e com García Márquez pela mão.
Soube-me bem.

Katie Melua, If you were a sailboat

segunda-feira, 24 de março de 2008

A minha cidade

Bica, 30 Janeiro 2008

Apetece-me passear pela minha cidade. Descer a pé o eixo Rato-Bica, que é onde há varandas como estas, e subi-lo retemperado por um chá ou coisa mais forte, possivelmente no Pavilhão Chinês. Esquadrinhar as ruas por onde anda a gente que veste esta roupa e a estende ao sol que hoje não há. Olhar com atenção para cada rosto e ouvir as histórias que as feições de cada personagem involuntária me queiram contar em silêncio. Talvez escrevê-las. Perceber se a cor do Tejo muda consoante o olhamos de uma transversal da Rua da Escola Politécnica ou da Calçada do Combro. Mandar recados telepáticos, via cacilheiro, às gaivotas de Porto Brandão e aos barquinhos de pesca da Trafaria. Cobiçar doçuras às montras das pastelarias, confortos às das lojas de design, poemas às das livrarias. Devolver com um raro chuto certeiro a bola que os miúdos do Bairro Alto pontapearão com demasiada força a dada altura. Devolver também os sorrisos que as velhas distribuem, das suas portas e janelas de menagem, defendidas a dente de cão ou garra de gato, a quem tiver força na alma para rodar ou levantar a cabeça num ângulo que, bem vistas as coisas, pouco exige à musculatura do pescoço. Trautear cantigas de amor a esta Lisbela, corrompendo êxitos de Amália, Jorge Palma, Carlos do Carmo, Mariza, Trovante, Vitorino, Sérgio Godinho ou Madredeus. Dedicá-las, se melhor destinatári@ não houver, aos guarda-freios dos eléctricos que ainda passam, às floristas da Rua Augusta, à multidão que enche as esplanadas do Chiado, a quem mantém retrosarias, capelistas, drogarias e outras espécies em vias de extinção. Admirar aquela árvore do Príncipe Real. Reconhecer a custo os meus lugares da noite à luz do fim da tarde e lembrar mais histórias, acontecidas ou por acontecer a quem nasce, vive e morre na minha cidade. Dar uma mão ou um braço a quem quiser ouvir-mas ou, melhor decerto, a quem conseguir cortar-me a verborreia com um olhar cúmplice, daqueles que nos transportam em tempo real para o canto superior esquerdo de uma folha em branco. Esperar, de ombro encostado e a ver Lisboa, pela primeira palavra de uma nova narrativa.

É o que vou fazer já a seguir.



Ala dos namorados, Loucos de Lisboa

quinta-feira, 20 de março de 2008

Fim-de-semana grande!!!


Kid Loco, Youpi

quarta-feira, 19 de março de 2008

O voo da codorniz com Google Earth (XIX)

Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch
País de Gales, Reino Unido


Esta terra fica na ilha de Anglésia e é mais pequena do que o nome que tem. As suas 58 letras significam "Igreja de Santa Maria no fundão da avelaneira branca, perto do redemoinho rápido e da igreja de São Tysilio da gruta vermelha". Passei por lá há mais de 20 anos, durante uma viagem em que me interessava, sobretudo, ver as montanhas de Snowdonia, alvo cenário da última aventura que lera d'Os Cinco.

(cliquem para ampliar )

Não me lembro de ter visto igrejas, avelaneiras, redemoinhos ou grutas, fossem elas vermelhas, brancas ou de outra cor... sei que me prendeu, ainda no carro, aquela concatenação de letras difíceis de pronunciar, a profusão de "w" e "y", os extraordinários quatro "llll" seguidos e, sobretudo, a terminação "gogogoch", quase uma insinuação de que tudo aquilo era a gozar, como se estivéssemos num episódio do Britcom.

Não descansei enquanto não decorei o nome daquele lugarejo onde, a bem dizer, não há mais nada que seja digno de nota. Tirámos uma fotografia ao pé de uma tabuleta com o nome da terra - na estação de comboio, se não me engano -, comprámos um postal e lá nos metemos no carro, a repetir aquilo de forma incessante, para martírio dos ouvidos paternos e maternos.

Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch... ainda consigo dizer a palavra sem pestanejar, mas lendo-a "à portuguesa", tanto quanto isso é possível. Julgo, porém, que os leitores do codornizes merecem conhecer a pronúncia correcta, em galês, deste vocábulo pouco redondo (carreguem no play), para o qual só me ocorre um adjectivo, ainda por cima "roubado": supercalifragilisticoexpialidoso!

The rain in Portugal

Promete-se sol a alguém e o sol até vem. Ontem parecia aplicar-se, pela primeira vez este ano, o provérbio "Março, Marçagão, de manhã Inverno, à tarde Verão". Sucede, porém, que o Inverno voltou com o lusco-fusco, decidido a durar a noite toda e a espraiar-se pelo dia de hoje. Enquanto a Primavera não vem, fiquemos dentro de portas, cantando e dançando...
Audrey Hepburn e Rex Harrison, The rain in Spain (de My fair Lady)

terça-feira, 18 de março de 2008

Músicas que ficaram (IV)

Prossegue a lista dos discos que marcaram os meus anos de adolescente. Gosto de álbuns ao vivo, tal como gosto de ir a concertos. Gosto, sobretudo, de álbuns ao vivo gravados em concertos onde estive. Não é o caso dos dois primeiros discos que hoje aqui trago, embora já tenha ouvido Moustaki ao vivo e tencione fazê-lo de novo em Maio. Os Queen nunca tive oportunidade de ver. Quanto ao disco dos REM, foi oferecido à minha irmã quando fez 11 anos e ocupou-nos o resto das noites de Verão. A culpada de levarem com esta música toda é, recordem-se os prezados leitores, a Martini. Entregas passadas: I, II e III.



Live at Webley '86, Queen (Bohemian Rhapsody)


Moustaki au Dejazet, Georges Moustaki (Le métèque)


Out of time, REM (Losing my religion)

Promessa a uma menina que amanheceu zangada com a chuva


Lulu Santos, Lá vem o sol

segunda-feira, 17 de março de 2008

Neblina no horizonte

Praia da Areia Branca, 12 Maio 2005
(cliquem para ampliar)


Neblina no horizonte

Neblina no horizonte
Mar é céu e céu é mar
A espuma vem salpicar
Branca e neve como a neve
E eu não sei se é uma onda
Se é uma nuvem
Se é a esteira de um navio
Se é a Barca de Caronte
No horizonte
Que atravessa a neblina
Fina

Neblina no horizonte
É uma manta que o céu tece
O Sol não nasceu mas põe-se
E cá em baixo a gente esquece
Adormece

Neblina no horizonte
O farol está apagado
E ainda assim os barcos saem
E o pastor conduz o gado
É o seu fado

Lisboa, 17 Abril 1995

domingo, 16 de março de 2008

Perdoem se insisto...

...mas este tipo era muito bom e revolta-me que quase ninguém se lembre dele. Dei-me conta disso há dias, quando uma entrada em que o incluí suscitou comentários sobre tudo o resto, mas não sobre este génio. Se escrevo "quase ninguém", é porque ainda há quem tenha histórias para contar sobre Herbert Pagani. E histórias que merecem ser lidas.

Pagani nasceu em Trípoli, na Líbia, de família judia. Filho do Mediterrâneo - “T’es comme un livre ouvert, il y a qu’à tourner les plages”, cantava -, andou em miúdo por Itália, Alemanha e França. Eclético nas línguas como nas artes, foi pintor, escultor, poeta e músico. Vendeu quadros a Fellini e ilustrou uma edição do Admirável mundo novo de Huxley. Traduziu Brel, Léo Ferré, Marcel Mouloudj, Barbara e Piaf.

Começou por cantar em italiano, com uma das vozes mais doces que alguma vez me lembro de ter ouvido. Ora, ouçam esta versão do Plat pays de Brel. A Lombardia toma o lugar da Bélgica sem que a letra tenha, curiosamente, de sofrer grandes alterações.


La Lombardia (Jacques Brel/Herbert Pagani)

Italiano, francês, africano, pacifista, humanista, humano, Pagani desenhava as capas dos seus discos e os cenários dos palcos onde actuava - o álbum gravado em Bobino é imperdível. Foi DJ na Rádio Montecarlo e tentou alertar a Unesco para o risco de Veneza naufragar irremediavelmente no pântano (já aqui pus essa música). Anteviu, no inigualável Mégalopolis, muito do que veio a ser o futuro da Europa e do Mundo. Celebrou a amizade que nos liga aos outros - pessoas e não só -, em momentos de partilha eufórica ou simples ocasiões para mitigar a solidão,


La bonne franquette (N. Skoraki/Herbert Pagani)


Berger d'artiste (Herbert Pagani/G. Moraschi)

e o amor, ora feliz e contagiante, vivido em casas que não fecham a porta a ninguém, ora condenado por forças obscuras, mas nunca, nunca rendido.


Chez nous (Vastano/Herbert Pagani)


Le condamné (E. Lombardi/Herbert Pagani)

Pagani era também judeu, porventura dos que mais se destacou na luta por evitar que o Holocausto fosse esquecido (ouçam L'étoile d'or, se tiverem oportunidade). Hoje, é também um ímpeto contra o esquecimento que o traz ao codornizes. A Herbert levou-o, aos 44 anos, uma leucemia. Eu, que tinha 9, lembro-me de o meu pai chegar a casa fulo, porque tinha falado nisto a alguém que lhe respondera: "Paganini? Mas esse não tinha morrido há imensos anos?".

Tinha, pois. Mas Pagani acabara de morrer e, nesse dia, o gira-discos lá de casa e o deck das cassetes foram seus. Agora, que também ele nos deixou "há imensos anos", apetece-me gritar "OUÇAM-NO!" aos que não o conhecem e "LEMBREM-NO!" aos que têm esse privilégio. Espero que uns e outros tenham chegado ao fim desta entrada, a mais longa que já se publicou neste blogue.

Mezinha infalível para curar insónias

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sexta-feira, 14 de março de 2008

Blogues à sexta (XIII)

Aguarelas de Turner

Prossigamos com a apresentação dos blogues a que o codornizes passou o prémio "É um blog muito bom sim senhora!". A responsável pelo contemplado desta semana chama-se Addiragram e cita Freud: "Seja qual fôr o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim". O blogue serve, diz, para convocar múltiplos instantes de vida.

E que instantes convoca? Instantes literários, pintura, música e fotografia. Os textos não são de lavra própria, antes citações bem escolhidas de poetas e prosadores, aliados a quadros ou fotografias. Estas são da autoria da dona do blogue e eis dois exemplos da sua inegável qualidade. Outro ponto alto é uma muito prática playlist que dá para ficar a ouvir música variada durante horas (em baixo, do lado direito).

Duas observações menos positivas, apenas: 1) Os links, perfil, arquivo de blogue e a própria playlist estão no final de tudo, o que torna a consulta trabalhosa. Uma coluninha ao lado das entradas estaria melhor (ou será do meu PC?); 2) Como leitor que gosta deste blogue, sabem-me a pouco as sete entradas que surgem quando entro. Sugiro um aumento para dez, pelo menos...

E vamos às sugestões da praxe. Nos últimos tempos, o Aguarelas de Turner deu-nos T.S. Elliott, Henry Miller com Boudin, Händel com Bartoli, Van Gogh com Eugenio Montale, esta foto lindíssima e um excerto do filme O pianista (que a RTP1 passa hoje à uma da manhã). Força, Addiragram!

Apetece dizer uma palavra

Mary Ellen Solt, White rose



Gilbert Bécaud, L'important c'est la rose

Apetece dizer uma palavra misteriosa
apetece dizer uma palavra
pode ser a incognoscível palavra rosa
ou a terrível palavra abracadabra
apetece dizer uma palavra lavra lavra.
Pode ser a palavra pa
pode ser a palavra pala
pode ser
pode ser apenas a palavra
Manuel Alegre, Uma palavra (de Senhora das tempestades)

quinta-feira, 13 de março de 2008

Noites longas

Conversas pela madrugada dentro, à volta de vinhos do Douro e após repasto a cheirar a Índia, com idas esporádicas à janela para fumar uma cigarrilha, lembraram-me esta quadra.

O vinho dá-te o calor que não tens;
suaviza o jugo do passado e te alivia
das brumas do futuro; inunda-te de luz
e te liberta desta prisão.

Omar Khayyam, Rubayat

quarta-feira, 12 de março de 2008

Para que não haja dúvidas

Se não der para ir a Loulé no dia seguinte, a escolha está feita.


Leonard Cohen, Chelsea Hotel #2

Moeda ao ar ou maratona

Olha, este vem no mesmo dia que o outro e toca no Campo Pequeno. Mas não desesperem, que no dia seguinte - 20 de Julho - o ex-Velvet Underground vai a Loulé.

Lou Reed, Walk on the wild side

Aleluia, grita um ateu!

O grito só pode ser este. É oficial, o homem estará em Lisboa no próximo dia 19 de Julho. Aleluia, aleluia, aleluia!!!


Leonard Cohen, Hallelujah

Nota: Diz o site que o concerto é no Passeio Marítimo. Não se sabe qual, mas Cohen à beira-mar nem dá para ter dúvidas. EU VOU!

Sixteen going on seven...ty

Uma das coisas mais divertidas e interessantes de andar nesta coisa dos blogues é descobrirmos gente com gostos, ideias ou, simplesmente, pancadas comuns. O prazer de ir mostrando coisas de que sabemos que os outros gostam - ou com que esperamos contagiá-los - é maior quando o fluxo se dá nos dois sentidos.

Dito isto, partilho com a Teresa da Gota de Ran Tan Plan (e suspeito que com outr@s bloguistas) uma paixão pelo filme Música no coração. Que passa tanto pela evocação das nossas cenas preferidas como pela descoberta de coisas divertidas relacionadas com a película em questão. Hoje, recebi esta pérola, em que um Torquemada dos tempos modernos arrasa a Fraulein Maria, condenando-a ao mais negro dos infernos. Retribuo, para suavizar o tom, com o filme abaixo. É uma magnífica prestação de Dame Judi Dench, num tributo a Richard Rodgers, co-autor, com Oscar Hammerstein II, do musical que tanto amamos (os que!).
Judi Dench, Sixteen going on seventeen
(se alguém souber o nome do fulano, diga, que eu acrescento...)

terça-feira, 11 de março de 2008

Músicas que ficaram (III)

Mais três discos que marcaram a minha juventude, correspondendo ao pedido da Martini. Vou divulgando a lista por ordem alfabética, o que resultou, neste caso, num trio poliglota. Do Cohen que gosto de ouvir à lareira ao Pagani que já quase ninguém conhece (suprema injustiça!), passando por uma Bethânia que animou - em colaboração estreita com litros de cerveja e vermute - muitos fins de tarde no Baleal. A canção que escolhi tem letra de Manuel Alegre.



Greatest Hits, Leonard Cohen (Suzanne)


Imitação da vida, Maria Bethânia (Meu amor é marinheiro)


Le meilleur de Herbert Pagani,
Herbert Pagani (Concerto pour Venise)

NOTA: Podem ouvir as duas primeiras entregas aqui e aqui.

segunda-feira, 10 de março de 2008

O voo da codorniz com Google Earth (XVIII)

Constelação de Orion
(carreguem na imagem para ampliá-la)


De novo a olhar para o céu, a codorniz visita outra das suas constelações preferidas. O voo de aqui há uns meses passou ao lado de Orion, mas não é tarde para fazer-lhe justiça. Até porque o tenho contemplado muito nas últimas noites, procurando o brilho encarniçado da estrela Betelgeuse, as "três Marias" que delineiam a cintura de Orion e a nebulosa que pode ser vista como a arma deste caçador gigante.

Embora não se saiba como, parece certo que Orion desafiou os deuses. Terá tentado violar a deusa da caça, Artémis (ou Artemisa) e jurado, fanfarrão, ser capaz de matar qualquer animal à face da Terra. Diz-se que os cães Maior e Menor, que moram perto dele no firmamento, eram seus. Outras fontes asseguram que a verdadeira presa do caçador eram as Plêiades, sete ninfas filhas do titã Atlas e da ninfa marinha Pleione. Em todo o caso...

Orion foi castigado. Artémis matou-o com uma seta, afirmam uns. Outros garantem que a deusa se aliou à Terra para produzir um enorme escorpião, animal esse que o caçador não foi, hélas!, capaz de vencer. Imortalizados nas estrelas, Orion e Escorpião nunca coincidem no céu. Mas dão-nos, em diferentes alturas do ano, o prazer de os ver brilhar e a oportunidade de pensar sobre os desafios com que provocamos os deuses e aqueles que nos lança a vida.

domingo, 9 de março de 2008

Sunday soundbytes (XII)

Uma frase musical a fechar o fim-de-semana. Que, no caso presente, foi tão bom que não apetecia mesmo nada fechá-lo. Daí a escolha: este homem é presença assídua no codornizes, mas, que querem? Tem palavras para quase todas as ocasiões e estados de alma...
domingo.mp3

Baú das codornizes (VII)


Walt Disney, A Dama e o Vagabundo

É uma das cenas mais deliciosas de um dos mais deliciosos filmes da minha infância. Já não a via há séculos, mas hoje deu-se a coincidência de ter lido sobre ela e de a ter recebido, de supresa, na minha caixa de e-mail (obrigado, A.). Quando era miúdo, ansiava pelo dia em que me fosse dado um jantar como este. Hoje, saboreio na memória quantos tive a sorte de viver, tentando reconstituir ementas, comensais e banda sonora. E anseio, inevitavelmente, pela próxima bella notte.

sábado, 8 de março de 2008

Se fosse só ao sábado...

Winsor McCay, Little Nemo in Slumberland

On a lazy Saturday morning when you're lying in bed, drifting in and out of sleep, there is a space where fantasy and reality become one. Are you awake, or are you dreaming? You see people and things; some are familiar; some are strange. You talk, you feel, but you move without walking; you fly without wings. Your mind and your body exist, but on separate planes. Time stands still. For me, this is the feeling I have when ideas come.
Lynn Johnston, Lynn on Ideas

sexta-feira, 7 de março de 2008

Blogues à sexta (XII)

aArtmus

Tendo passado a seis blogues, qual batata quente, um prémio que tive o prazer de receber, julgo-me no dever de apresentá-los aos leitores. Fica resolvido, por um tempo, o embaraço da escolha desta secção concorrida do codornizes.

O blogue da Mateso tem, desde logo, uma vantagem: abre-se e a música começa a tocar. Bem sei que isso não é um exclusivo, mas os sons que vêm do aArtmus embalam e arrastam o leitor para os textos que nele vão surgindo. "Amante da arte, da música e das coisas belas e inconformista com a injustiça", a dona do espaço não se limita a dar-nos música. Fotografias, pinturas e filmes acompanham textos da própria ou de outros, numa partilha em que tais justaposições parecem fazer todo o sentido.

A actualização não é diária, mas quase. Algumas entradas são, porventura, demasiado longas para o ritmo blogueiro, mas não deixem de as ler. Há apenas o incómodo de o perfil, o arquivo do blogue e a lista de links estarem cá em baixo. Se estivessem ao lado das entradas, a consulta tornar-se-ia mais fácil.

Vamos, então, dar um pulo a algumas das últimas entradas: chuva apaixonada, aves nocturnas de Al Berto, um ou outro dos desafios que andam a circular na blogosfera e o prazer de voltar a ouvir os Credence. E uma citação irresistível: "Nunca se conseguirá ser sábio se primeiro não se foi traquinas" (Jean-Jacques Rousseau).

Simpsons em três actos

Primeiro, o retrato original da família com os amigos mais chegados. Depois, a conversão em manga por um tal de Spacecoyote. Finalmente, o genérico da série numa versão alternativa dirigida por Chris Palmer. Desculpem, mas adoro isto. Sou tarado por estes gajos amarelos e hoje acordei bem disposto.



quinta-feira, 6 de março de 2008

Uma música nova

Embora tenha fama justificadíssima de ser vidrado nos oldies, gosto muito de ouvir música nova. Esta miúda pode vir a dar cartas. Tem 19 anos, como a amiga que me deu esta sugestão (obrigado, P.) e 19 é precisamente o nome do seu álbum de estreia. É inglesa, já recebeu prémios e até há quem lhe chame "a nova Amy Winehouse" (disparate total). Seja como for, vale a pena ouvi-la e o videoclip está bem esgalhado.


Adele, Chasing pavements

(...)
I'd build myself up,
And fly around in circles
(...)

Sulcos em catadupa


… et les talus de gauche tiennent dans leur ombre violette les mille rapides ornières de la route humide. Défilé de féeries.
Jean-Arthur Rimbaud, Ornières (de Illuminations)

…e à esquerda os taludes guardam na sua sombra violeta os mil rápidos sulcos da estrada húmida. Desfile de maravilhas.
Sulcos (de Iluminações, tradução de Mário Cesariny)

…e as escarpas de esquerda resguardam na sua sombra violeta os milhentos sulcos de rodados da estrada húmida. Parada de irrealidades feéricas.
Sulcos de rodados (de O rapaz raro – poemas e iluminações,
tradução de Maria Gabriela Llansol)


sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas
Al Berto, Morte de Rimbaud (de Horto de Incêndio)

nas areias do açúcar mascavado / do amor desenganado
Sérgio Godinho, Lamento de Rimbaud (de Domingo no Mundo)

Nota: Tirei a foto no Toxofal de Baixo

quarta-feira, 5 de março de 2008

Sentem-se à mesa dos Vagabond Opera

Estes tipos chamam-se Vagabond Opera, têm pilhas de graça é vão estar hoje no Maxime, a partir das 23h. Sou capaz de passar por lá: estou há que tempos para ir visitar a casa que Manuel João Vieira ressuscitou. Neste vídeo que a Senif me mandou, os Vagabond cantam um clássico de Georges Moustaki e Marguerite Monnot, que será sempre propriedade inviolável de Edith Piaf. Por isso mesmo - e por gostar de combinar versões -, anexei também a interpretação de la môme, com prólogo poético para inglês ver.


Vagabond Opera, Milord


Edith Piaf, Milord (1959)

Músicas que ficaram (II)

Continuo a responder a este desafio da Martini, tarefa hercúlea à qual comecei a entregar-me há dias. Pede-me ela discos que tenham marcado a minha juventude. Nesta segunda entrega, quis o acaso que a ordem alfabética alinhasse três faixas em português. Veremos o que trazem as próximas...


Chico e Caetano juntos e ao vivo, Chico Buarque
e Caetano Veloso (Você não entende nada)

Dia de concerto, Rio Grande (Queda do Império, de Vitorino)

Filhos da Madrugada cantam Zeca Afonso
(Canto moço, pelos Ritual Tejo)

terça-feira, 4 de março de 2008

Alguém viu esta gatinha?

Não é uma entrada muito ao estilo do codornizes, nem o seu conteúdo é tão sumarento como o título poderia fazer crer, mas é por uma boa causa e a minha prima Peanut, que já proporcionou entradas como esta, merece isto e muito mais. Um beijinho do primo que te adora.

O caso é que esta gata, que se chama Micas e pertence à minha prima, desapareceu há cerca de uma semana no Montijo. Pede-se a quem a encontrar o favor de contactar o número de telefone 963753947. Os sorrisos que isso traria a uma miúda impecável de 14 anos valem o esforço, acreditem! E para animar a procura, fica uma canção do musical... Cats, claro!




Elaine Page, Memory

O meu cavalo só falava inglês

Não apareço neste filme, mas estive no concerto da mesma digressão, em Lisboa. E cantei com mais entusiasmo do que estes todos juntos. O disco já saiu, este clip é do DVD. Magnífico.

Chico Buarque, João e Maria

NOTA:
Apercebi-me agora de que é a primeira vez que ponho Chico Buarque no meu blogue. Como é que isto foi possível??!!

Se a senhora o diz...

A Júlia Moura Lopes, do blogue O privilégio dos caminhos, teve a fineza de me atribuir este prémio. Foi há mais de um mês, num fim-de-semana em que as festas da terra me fizeram estar quatro-dias-quatro offline. Só hoje, num passeio algo narcísico pelo BlogSearch, me dei conta da distinção. Que agradeço e estendo, como é da praxe, a mais alguns blogues. Uso como critério as visitas que fiz nos últimos dias. De fora ficam, por princípio, os ninhos de amigos pessoais.

Aguarelas de Turner, da Addiragram
aArtmus, da Mateso
Alicerces, da Helena F. Monteiro
A menina dos olhos de água, da Andreia Ferreira
Piano, da Isabel Mendes Ferreira

No porto de Amesterdão

Recentes trocas de comentários neste blogue encheram-me de saudades de Amesterdão, onde perguntei à minha mãe, aos 8 anos, o que é que aquelas senhoras estavam a fazer nas montras... por falta de tempo, não me alongarei hoje em recordações das vezes que ali fui: eis duas versões de um clássico sobre aquela cidade, que é também título de um belo romance de Ian McEwan.


Jacques Brel, Amsterdam


David Bowie, In the port of Amsterdam

segunda-feira, 3 de março de 2008

O voo da codorniz com Google Earth (XVII)

Casais das Campainhas e do Rijo, Portugal

Terra de amigos. Daqueles que o são há anos, mas parecem sê-lo há séculos. Sulcamos na vida caminhos... ia a escrever paralelos, mas não: esses seguem lado a lado, mas nunca se cruzam. Digamos antes caminhos cúmplices, num ritmo de passeio, que pode ser a pé ou de bicicleta, à chuva ou ao sol. Não importam as posições relativas, que variam sem cessar. Quem está um passo à frente espera um bocadinho ou estende a mão a quem ficou um passo atrás. A amizade contida nesse gesto materializa-se, não raro, num cálice de ginjinha, num filme de que se gostou, numa cigarrilha conversadora ou num abraço reconfortante.

Terra de festas. Ou será mais correcto terras? Nesse caso, siamesas. Os Casais das Campainhas e do Rijo estão unidos por uma espinha dorsal que é fronteira entre os concelhos de Lourinhã e Torres Vedras. Prossigo, pois, no singular. Terra de festas que nos aguardam em Julho, com bailarico ao ar livre, restaurante esmerado, barzinho acolhedor e porco no espeto para quem aguentar a pedalada. Terra onde há recantos discretos, mesmo em dias de festa: a música apenas em pano de fundo e, à nossa frente, só o céu escuro, o vale e o grande plano que escolhermos ou aquele que nos escolher. Some-se a isto a hospitalidade de toda uma família, gerações de sorrisos que se partilham sem cerimónias, memórias passadas a projectar a amizade no futuro.

Terra de pão. Do pão amassado à mão, que há cada vez menos e de que cada vez gosto mais. Pão cozido em forno de lenha, com dedicação e carinho que comovem, numa padaria onde se misturam os aromas frescos do campo, da farinha e dos troncos e ramos recém-apanhados. Pão entregue à hora certa com o esforço de quem tem no trabalho um dos valores-chave do seu percurso. Pão que dura uma semana sem ganhar dureza nem bolor. Mas que também se pode comer recém-nascido, numa manhã de quase Primavera, com azeite e açúcar por cima. Pão que é comunhão mesmo para quem não prova nele o corpo de Deus.