Maria Helena Vieira da Silva, Biblioteca em fogo
Às vezes penso que os livros passeiam lá por casa quando não estamos. Do braço do sofá, onde os deixou a preguiça, para a bancada da cozinha. Talvez à procura de almoço. Da mesa de cabeceira, onde se eternizam depois de lidos, para cima da cómoda. Porventura desejosos de escaparem às quatro paredes do quarto. Da mala de tiracolo pendurada no cabide da entrada, onde viajaram todo o dia, quiçá sem serem abertos, para a borda do lavatório. Aflições, compreende-se.
Quantas vezes me acontece procurá-los onde sei que os deixei, onde tenho a certeza de os ter visto, para descobrir que só me espera o desengano... sumiram, foram ao parapeito da janela ver que tempo faz ou adormeceram no chão enquanto decidiam o itinerário do dia. Só muito raramente estão inocentes, por exemplo, quando os levou a cara-metade (sucede, por vezes, estarmos a ler o mesmo livro, gerando-se confusões de exemplares).
O que nunca fazem os bons dos livros é voltar pelo próprio pé à ao lugar que lhes coube na (des)organização do escritório. Ou da sala ou da cozinha ou do quarto de trás, que isto de ter livros em todas as divisões foi uma escolha. O que não foi uma escolha foi caber-lhes a eles a decisão de pousarem aqui ou acolá, conforme os humores.
Não me incomoda, na verdade, a insubordinação livresca. Acho graça a este deambular, diverte-me imaginar como se deslocarão - se batendo páginas, num voo ruidoso, se rastejando escada acima, se empilhando-se uns para ajudar os outros a escalar obstáculos - e tudo isto tem a vantagem de haver sempre um livro à mão de semear. Para ser totalmente franco, até suspeito que o cheiro agradável que às vezes sinto ao entrar em casa, e que nunca consegui nomear, é o das palavras, frases e versos que estes amotinados não evitam, no seu entusiasmo, deixar escapar.
12 comentários:
Gostei mesmo deste texto sobre a mobilidade e a vida própria que os livros de facto têm. Além disso, o casamento com a Vieira da Silva, umas das minhas pintoras favoritas, resultou soberbamente!
Precioso este teu texto. Os livros lá em casa são mesmo assim, andam a passear de um lado para o outro e às vezes passeiam por trás dos móveis, nos degraus, enfim, onde lhes apetece!
Ainda me lembro quando estávamos os dois a ler o livro da Ana e tínhamos três exemplares dele em casa, mas queríamos ler do mesmo... o que estava em cima da mesa de cabeceira! LOL
beijinhos
Gostei bastante do texto..:) mas o que interessa realmente é a presença dos livros, seja ela organizada ou desorganizada:) beijinho e sorrisito*
Maravilhoso encontro este! O livro vivo, habitado pelas "almas"dos que o
saboreiam.Adorei esta página...que poderia ser o princípio de um livro...Vai em frente.Um beijinho.
Que fantástico texto, Huck! E tão visual que é praticamente um filme: ficamos a "ver" os livros subirem escadas, espreitarem pela janela ou irem à casa de banho. Só falta uma banda sonora, que imagino bem ritmada também. Boa ideia para um filme de animação, mesmo!
Um beijinho
Eu por acaso tenho cada vez mais a certeza que o grande amor da minha vida, são eles, os livros :) Não os tenho assim espalhados pela casa, mas vou ponderar uma mudança. Gostei da ideia :D Beijinho!
Ora viva, caro Rato do Campo! Ainda bem que gostaste deste regresso ao meu ninho... já cá não passavas há uns tempos! Abraço.
Sofiazinha, não me lembrei dessas paragens mais recônditas onde, por vezes, se escondem os nossos livros. Deve ser quando querem comentar as caras que tu ou eu fizemos ao lê-los... beijinhos, tantos quantas as páginas que andam lá por casa.
Por entre o luar, organizar essa presença revela-se uma tarefa ciclópica... eles não deixam! Beijinhos e sorrisos para ti. Nublados, mas à espera do sol.
Aaddiragram, gosto muito dessa ideia... livros como personagens de um livro, rebelando-se contra os limites que os donos lhes querem impor. Ainda que, neste caso, o alvo do motim seja eu! Beijinhos.
Ana, quem diz personagens de livro diz personagens de filme. Para a banda sonora, encontrei esta coisa com alguma graça. Chama-se Flying books. Que te parece?
Andreia, o amor pelos livros é lindo de se ter! Espalhá-los pela casa só em parte é um exercício voluntário, mas não resulta mal... beijos!
Passo todos os dias, só que nem sempre sei o que dizer, ainda que leia sempre. Abraço!
Olá, Huck. Este teu texto é brilhante, mesmo. Adorei.
Bjs
Rato, fico contente! Nisto dos blogues nem sempre apetece comentar, mas devo dizer-te que costumo gostar dos ovos que cá deixas, tal como dos queijos que semeias no teu blogue. Um abraço.
MariaV, até corei! Beijinho grande para ti.
adorei esta ideia dos livros com vida. vida transformada em movimento, vida palpável. agora percebo porque os livros desaparecem do sítio pnde penso que os deixei e se materializam noutro lugar. caprichos!
Olá, tcl! Vida palpável, é certo... mesmo quando os livros se aquietam. Estas andanças deixam neles as marcas do tempo: uma cicatriz na lombada, um canto dobrado, uma capa empenada pelos banhos de sol. A gente bem os avisa, mas o raio dos livros não há meio de tomarem juízo!
PS: G'anda doce de tangerina, pá! Beijinhos.
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